LIVROS | O RETORNO, DULCE MARIA CARDOSO
O livro "O retorno", de Dulce Maria Cardoso, foi a minha primeira obra da autora.
E não sei se a última (tenho muito curiosidade com "Eliete", mas...). Sim, vou já muito direta ao assunto, não a-do-rei esta obra (mas consigo entender o valor literário que tem).
Primeiro, dizer que ainda não conheço muito sobre a autora, mas sei que é cronista (vou certamente ler para conhecer melhor este lado dela) e tem vários romances, muitos deles premiados, entre os quais este mesmo, editado pela primeira vez em 2011, pela Tinta da China.
Gostei muito da escrita da DMC, tem um estilo próprio, que nos remete logo para outros autores - é impossível não cair naquele lugar-comum de comparar com José Saramago - faz uso de pontuação sim, mas de uma forma mais livre, não há marcação muito vincada de discursos direto/indireto, a voz do narrador mistura-se com as das personagens, tanto em pensamentos como em voz. Isto agradou-me. Exige alguma atenção, sim, às vezes fez-me voltar um pouco atrás na frase, sim - mas não é uma leitura densa, complicada ou cansativa!
A história é contada por Rui, um adolescente que nasceu e viveu até aos 13/14 anos em Angola, com os pais e irmã mais velha. Há também o tio Zé e os amigos Lee e Gegé. A narrativa acompanha a saída abrupta e o "regresso" à metrópole, como ele fala, após a revolução de 74
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O início e a parte final entusiasmaram-me, mas confesso que ali a meio me custou, a certa altura estava a achar mesmo uma seca, e parecia que não caminhava para lado nenhum. Talvez o uso abusivo, a meu ver, de encaixes (ou desvios), podem ter resultado neste meu cansaço: por exemplo, é introduzida uma cena em que o Rui vai dormir com a irmã para o sofá e começa a surgir uma conversa entre os dois, mas antes de começar, no meio há desvios e desvios de desvios sobre outras questões que aconteceram (com viagens no espaço e tempo também) para depois regressar e então iniciar a conversa com a irmã - isto acontece imenso imenso, acho que carateriza mesmo o livro - não sei se é o estilo da autora, não conheço.
Aspetos positivos: fiquei a perceber um pouco melhor os pensamentos, os comportamentos daquela época, pelos olhos de um rapaz, de comunistas, revolucionários, retornados.. a aversão e desprezo pelos pretos, de uns, mas também as esperanças e desejo de paz, de outros;
-Gostei da linguagem do Rui, acho que é um dos pontos fortes de autora, e dá mesmo a sensação que foi o Rui que escreveu, pensou, falou...;
-Gostei da ausência de pudor e moralismos . Por um lado, a coragem, DMC escreveu coisas difíceis, coisas duras de se ouvir e, imagino, de se escrever, imagino a dificuldade de colocar palavras "maldosas" na boca das (suas) personagens. Principalmente no que toca ao racismo, toda os sentimentos de desprezo e ódio, principalmente pelas angolanas, pelas mulheres (até custa a ler, e ouvimos estas coisas ainda tanto hoje em dia...)Por outro lado, não procura ensinar nem mostrar nada, conta aquilo que foi, o que é. Certo ou errado, não importa, "Eu estive aqui".
Há algo para mim curioso: apesar de o Rui ser adolescente e de ter várias experiências sexuais, nunca é mencionada a palavra sexo. Certamente que isto foi pensado, mas achei curioso e parece-me que está muito alinhado como a personagem- não é um romântico-apaixonado-lamechinhas, nem púdico (aliás, roça o cliché do rebelde que falta às aulas, fuma, namora...), mas também não vive focado no prazer, aliás, percebe-se ao longo da história que ele não busca o prazer, as as raparigas e mulheres vão surgindo e cruzando-se consigo, e ele vai, sem procurar ter grande controlo, consentido e experimentando o amor (palavra que também nunca surge pelo Rui, curioso!)
Acho que gostaria de ter lido este romance quando era adolescente.
"Não sei quando é que deixei de sentir uma coisa de cada vez."
Classificação: 3/5
As frases favoritas
(86) São tempos conturbados, se nos rirmos não estamos sozinhos e talvez consigamos adormecer.
(113) (...) o representante do comitê dos trabalhadores do hotel já esta a falar há mais de meia hora. Quando se cala é um alívio tão grande que toda a gente bate palmas.
(137) o meu marido saiu para ir buscar farinha de mandioca e ainda não voltou. Repetia farinha de mandioca como se a chave do mistério estivesse aí, como se se o Sr. Paulino tivesse saído para comprar feijão o resultado tivesse sido diferente.
(142) A mãe diz que são frieiras, não conhecia a palavra, também não conhecia cieiro, que é quando os lábios se cortam e começam a sangrar quando nos rimos. Deve ser por isso que os de cá não se riem, quem é que pode ter vontade de rir quando sabe que vai sangrar dos lábios.
(164) Já pedi um dicionário de inglês na biblioteca e vou decora-lo inteirinho, vou começar na letra A e sigo por ali adiante até ao fim, quando tiver as palavras decoradas sei falar inglês para trabalhar na América e posso sustentar a mãe e a minha irmã.
até breve ~
Comentários
Como, antes, tinha lido o Memorial do Convento, essa comparação com Saramago acabou por me surgir automaticamente :p
A premissa em si é muito interessante e houve muitos aspetos a revoltar-me, mesmo quando o discurso do Rui parecia leve, porque revela o melhor e o pior do ser humano. Só gostava que a segunda parte da obra tivesse um pouquinho mais de emoção.