LIVROS | Carne da minha carne, Hellen Grace Carlisle

oh começar por dizer que acho o título deste livro muito mauzinho. 
Se o tivesse encontrado por acaso à venda por um alfarrabista, de certo não lhe pegaria
O título original é Mother's Cry.

Este livro veio por um acaso, por um episódio que ouvi, de um podcast que já aqui falei Ponto Final Parágrafo (link). O autor Afonso Reis Cabral, o convidado, falava de livros para eles importante e nomeou este, que não tem nenhuma edição contemporânea, e só se encontra em alfarrabistas e talvez algumas bibliotecas. Fiquei encantada pela forma encantada que ele falou, por ser uma história muito simples, escrita sem grande conhecimento ou preocupação literária, por assim dizer. 

Mais tarde, andei à procura pelas internets e lá o encontrei e comprei, a través de um alfarrabista por um valor simbólico. Simbólico demais, até, para a riqueza que agora sinto que tenho em mãos.

Este romance deve ter sido escrito perto de 1930, é difícil perceber porque há muito pouca informação sobre a autora e o livro, a data mais antiga que encontrei foi 1930. Mas por outro lado saiu nesse ano o filme baseado no livro, por isso não sei se não terá existido uma primeira versão anterior. (Podem ver o trailer aqui.)

A edição traduzida para português que tenho não tem data em lado nenhuma, apenas refere ser da editora Guimarães e Cª, traduzido por Alice Ogando.
-
A história inicia-se em Nova Iorque, no fim do século XIX, com Mary, uma jovem rapariga que se apaixona por Franck,  um colega do seu primeiro emprego na casa Landry. Como era mais velho, tratava-o por Sr. Williams, com todo aquele respeito e formalidade da época e a relação foi se desenvolvendo, com as devidas apreciações e "autorizações" da mãe, que apreciava que a filha fosse cortejada por um homem de tão boas maneiras, gentil..
Eventualmente casam-se e mudam-se para a sua casa nova e Mary é muito muito feliz. 
A escrita é sempre de grande simplicidade, sem convencionalismos gramaticais, sem pontuação, aliás, existem até diversos erros (questiono-se se eles refletem a ignorância de Mary ou também de Hellen (que também atravessou algumas adversidades e provavelmente não estudou muito).

A história continua, é sempre um monólogo de Mary, que está tão tão feliz por ser casada, que era algo muito bem visto, por ter os seus cortinados e mobília nova, e uma marido tão bom. Vem o primeiro filho, em 1900 e depois mais três com idades sempre muito próximas: Danny, Artie, Jenny e Betty. 
Mary adorou ser mãe de cada um, adorou amamentar e toda essa descrição de como viveu a maternidade é muito bonita, e vai ecoar até ao fim de história. 
Mas muitas coisas parecem começar a correr mal, algumas Mary não antecipou, ou não quis ver, pelo amor incondicional pelos filhos que a cegou. 
Após ficar viúva, as coisas adensam-se e há uma sucessão de terrores, com algumas felicidades bonitas pelo meio que Mary sabe apreciar, apesar do seu coração partido, cada vez mais partido. 

Resumindo esta review: 
Helen/ Mary (não consigo não agregá-las) são honestamente ingénuas, no bom sentido, no sentido de não analisarem de forma muito intelectual as coisas da vida, mas ao mesmo tempo, carregarem uma sabedoria da vida imensa. É uma história que humaniza. É incrível por ser tão simples e despida, tão fácil, mas tão poderosa e tão humanizante. . É sobre a dor, o sofrer e morrer aos pedacinhos pelos e por os filhos, mas o mais bonito é o fim da história (não resisto a não eterniza-la aqui)


"(...) olhei para as minhas mãos e olhei para os meus pés e apalpei-me de uma ponta à outra (...) e uma ideia estranha  me acudiu que o meu corpo era maravilhoso enfim era maravilhoso que desse corpo tivessem saído tantas vidas. A desgraça e a destruição tinham saído dele tal como a felicidade e criação. E então pus-me a cantar (...) Oh obrigada à vida e a todas as coisas belas que fazem parte da vida e pensava que mesmo a dor da vida era bela porque quando a gente sofre sente um sentimento e quando a gente não sente nada é porque já não é nada (...) Não, eu não queria morrer porque era maravilhoso viver. Com este corpo eu tinha dado vida a quatro filhos primeiro um assassino depois a um criador de uma beleza maior que a sua alma depois a uma mãe feita para dar vida depois a uma que procurava a verdade cegamente e às apalpadelas. Agora eu já não tinha filhos. O destruidor tinha sido destruído o criador pertencia à sua pedra e mãe a seus filhos e a que procurava a verdade tinha sido traída. A luta. Por toda a parte a luta. Por toda a parte o sofrimento e a luta. E eu também tinha tido a minha luta o meu sofrimento e assim tornava-me rica de sofrimento e de luta e sentia que isso queria dizer rica de vida. "



-
Outras partes favoritas:

(17) Estava contente por ter dito isto porque lhe deu muito prazer e ele disse que eu lhe agradava por ser tímida e eu pensei como ele era gentleman, pois os rapazes lá da rua chamava-me gata assanhada. Gostava bem que um ou dois deles estivessem quando eu voltasse para casa com o senhor Williams e que me pudessem ver com ele que era tão bonito e tudo e tudo.

(69) Não sei onde tu estás porque não sou religiosa quando se passa o dia a lavar e a limpar e a fazer o comer não há tempo para isso (...) mas há um lugar onde tu estás tal como quando eras vivo é aqui dentro de mim. Aqui não podes tu morrer. Se fechar os olhos vejo-te andar dentro de mim. 

(135) Olhei então para as minhas mãos para os meus pés e para o meu corpo e pensei em como tudo aquilo tinha saído de mim e senti-me como que arder muito alto muito direito muito claro com todas as coisas que nos tinham acontecido.

(170) E a minha única razão de viver mãe é construir amontoar beleza força e grandeza e tudo isso muito mais belo e mais forte do que nunca poderei ser.

(...) Baixei os olhos para ver o meu corpo e perguntei de onde é que eles tinham saído e o que tinha este corpo que ver com o Arthur Williams e Daniel Williams com Jenny Williams e Beatty Williams. Sentia-me como se realmente alguém se servisse de mim e eu não compreendesse porquê. Pensava que era exatamente como uma máquina de coser que se faz andar mas a máquina não sabe quem pedala e também não sabe o que faz contenta-se em picar sempre a direito sem mesmo saber porquê

classificação: 4,5/5
até breve ~

Comentários