Poderia ser uma Bíblia

Hoje ao meio dia, vi uma notícia que dava conta do "envio para casa" de reclusos que terminaram/estavam a cumprir os últimos dias de pena, em várias prisões.

O central da peça era um testemunho de um senhor, nos seus 40/50.. ou mais ? (é difícil dizer, só pela voz e silhueta, e pelo menos a mim, pessoas que cumprem pena parecem ficar mais envelhecidas).

Vou atribui o nome Thom, ao senhor, para o fluir deste desabafo. 
O Thom aparece nas filmagens com dois sacos de plástico grandes de cor azul, azul de céu limpo, daqueles da loja sueca. Carrega um em cada ombro. Pela forma, percebemos que deverá ser a sua roupa. A vida carregada em dois sacos aos ombros (mais a roupa do corpo).

O Thom diz que, quando saiu, ficou sem nada, trouxe apenas aquelas dois sacos azuis de céu, ali traz tudo o que possui. Nesse mesmo dia, deslocou-se a serviços específicos para apoio a pessoas em condição de sem-abrigo, que lhe indicaram a correr na prisão, antes de sair. Quando chegou, já tinham encerrado, então dormiu na rua. 

O Thom estava a cumprir a segunda pena na prisão, de 3 anos, por roubo. 

O Thom respondeu à jornalista "Sim tenho (família), mas é como se não tivesse".

Parece que depois da reportagem o Thom conseguiu algum apoio e já tem garantida guarida num local em Lisboa, que não fixei. Thom disse que, depois de as coisas estabilizarem, e assim que puder, espera "encontrar emprego".

Onde estás emprego, perdeste-te? Onde te escondeste? 
Tantos tanto te procuram e tu, onde te enfiaste então?


Ainda bem que existe aqui um final de esperança, nesta peça, nesta história. 

Mas o que me me fez ficar a pensar foi o conteúdo dos seus sacos, os seus pertences. 
O Thom não tem apenas roupas. 
O Thom carrega outra coisa - e até deve ser pesada e aumentar o sacrifício do transporte, do caminhar, do procurar...
Podia ser um livro importante, como por exemplo a Bíblia, que acompanha religiosamente (literalmente) tantos crentes. 

O Thom tem uma televisão, que depois corrige.. "O meu plasma. É tudo o que tenho".
Essa caixinha mágica, que nos liga. Que nos permite espreitar Portugal, o Mundo, e saber coisas dele, permite conectar. 

É que:
Os serviços prisionais deram-lhe pontapés no rabo ("mandaram-me embora a despachar").
A vida deu-lhe um pontapé no rabo.
A família e amigos (?) deram-lhe um pontapé no rabo.
O mundo deu-lhe um pontapé no rabo.

Mas o Thom ainda se quer ligar a esse mundo, tem o seu plasma.
O seu companheiro, o seu familiar, a sua amante, o seu amigo fiel
Tem a sua caixinha mágica, para o que der e vier
(Ainda) quer ver o mundo, não o rejeita, não o afasta, não o repudia. 

Ou então, é o seu método de sobrevivência: utilizar a televisão e o que ela conta para se salvar. Do próprio mundo (que o chutou).


Illustration by Julia Bereciartu (illustrator and crazy cat lady)

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