LIVROS | Jalan Jalan, Afonso Cruz (parte I)
Jalan Jalan é uma obra de Afonso Cruz, publicada em 2019, distinguida com o Grande Prémio de Literatura de Viagens Maria Ondina Braga. Jalan Jalan - uma leitura do mundo.
Este é, inacreditavelmente, surpreendentemente, um livro soberbo, um dos meus favoritos de sempre (vários outros títulos do autor estão no meu top) e uma escolha muito acertada para estes dias de confinamento social. É bom ler horas, dias seguidos, sem ter que interromper o prazer com "obrigações sociais"; sim, eu prefiro ler, quando o objeto alvo é bom, claro).
Nunca tinha lido um livro de viagens. Ainda que, apesar do prémio o identificar desse modo, eu não acho que este seja um livro de viagem. Mas como nunca li outro, que posso dizer eu, na verdade? (cof cof).
Não posso, mas gostaria de dizer que este livro de 646 páginas, que devorei em cerca de 8 dias, me prendeu do início ao fim. Mas posso dizer que me prendeu imenso até às duas centenas de páginas e que me continuou a prender até às quatro centenas. As últimas duas centenas li com avidez porque queria ver o "fim", continuamente com a ânsia de me voltar a apaixonar pelas palavras, pelas frases. Contudo, achei que não ficou à altura, ora por repetir explicações anteriores, desnecessariamente, ou por acrescentar aspetos muito minuciosos e complexos que não me pareceram "encaixar" com a primeira metade do livro.
Assim, consigo afirmar, que para mim, a obra deveria ter terminado antes da página 440 (que curiosamente nos diz "A qualidade do nosso trabalho depende dos nossos rivais") Esta minha interpretação , que não é mais do que a minha opinião, remete-me também para uma das minhas passagens favoritas da obra:
(70*)"O final feliz depende do momento em que decidimos terminar a história (...) se prolongarmos mais, o final incluirá inevitavelmente a morte"
Ao contrário do habitual, escrevi muito durante a leitura. Afonso Cruz, como aliás é já habitual, escreve tantas coisas tão certeiras e tão "bem escritas" que, desta vez, pela dimensão da obra, considerei ser melhor apontar as várias passagens que mais me faziam refletir, porque queria refletir mais sobre elas (num processo contínuo) e se não as apontasse, iria esquecer-me (tenho problemas com a minha memória).
Usei quadradinhos de papel que depois de escritos fui deixando na sua página correspondente. Hoje que terminei o livro, desfolhei o livro inteiro, reli todos os quadradinhos, retirei-os e espalhei-os na mesa. Queria relacionar estes pedaços preferidos, nos seus pontos em comum, e agrupa-los nos diferentes "temas" para refletir e escrever sobre. E, em última instância, vos convencer a ler este livro fabuloso.
Agora que tenho a mesa com grupos de quadradinhos de papel, quero falar-vos deles.
Afonso Cruz, com uma visão da atualidade, fala-nos de tudo, essencialmente da liberdade, do tempo, do universo, dos pensadores e poetas antigos. As viagens são o mote, talvez. O resto é o tudo.
Sobre histórias, literatura e empatia
*
(135)"As histórias não deviam começar com "era uma vez", mas sim por " era uma voz".
"As histórias são muito diferentes se contadas pela voz de quem nos ama." (Juan Villoro)
-
(44) A literatura é um exercício de empatia (....) ajuda a impedir a erosão da empatia e objetificação do outro (...) A empatia é uma anulação da distância, é uma forma absoluta de viagem (...) Sem isso (...) chegamos facilmente à mais grave desumanização.
-
(262) Quando encontramos uma personagem com a qual nos identificamos, é como se nos víssemos ao espelho, e isso é uma forma de autoconhecimento. Mas também criamos empatia com as personagens que julgamos distantes dos nossos padrões morais (como anti-heróis) aqueles, que no nosso quotidiano, acusamos, ofendemos ou violentamos.
Sobre a dimensão moral
(56) As revoluções não devem ser feitas por quem não tem nada a perder, mas sim por quem não tem nada a a ganhar (Sabato). Por quem está sentado, não por quem acabar de chegar faminto.
(122) A maldade é um contexto (...) Os automóveis parecem funcionar como uma máscara. Dentro deles insultamos de uma forma tão fácil e eloquente que parece que o treinamos constantemente (...) parecer oferecer os dons da imunidade e da invisibilidade em conjunto com um liberdade que não nos faz boas pessoas.
A dispersão da responsabilidade é um dos motivos pelos quais não agimos eticamente quando confrontados com situações aviltantes "Escondemo-nos na multidão". Num grupo, a responsabilidade dilui-se. No anonimato, a responsabilidade deixa de existir.
(266) Sempre que há um escândalo financeiro, temo que a História se repita e que, no final, os implicados apresentem simplesmente "a sua honra" como um alibí irrecusável, dando a entender que à hora em que estas práticas delituosas tiveram lugar, se encontrava na companhia da sua honra.
(435) A dimensão moral altera-se com a distância (...) É fácil ter uma ceia de Natal com a fartura a que nos acostumamos, mas se imaginarmos que estamos a comer com centenas de pessoas coladas ao vidro a pedirem comida, o cenário muda de figura.Um rosto colado à janela muda tudo.
Sobre a Vida e a Morte
(35) "A vida e a morte são a mesma coisa"
-Então porque não te matas?
- Porque seria a mesma coisa.
(Empédocles)
(...) o facto de estarmos cientes da nossa própria efemeridade dá-nos urgência de agir. O memento mori segreda-nos qual o sentido da vida.
(513) Realizar o seu potencial leva uma pessoa a aceitar a morte com mais facilidade (...)
Pessoas menos ambiciosas serão naturalmente menos ansiosas e de algum modo mais pacificadas com a morte.
(180) Para salvares uma ideia , não a leves contigo, entrega-a. Dar, ao contrário do que possa parecer, não nos esvazia, preenche-nos, dá-nos plenitude (...) há que dar um final, um significado, deixar uma herança: algo que se juntou a nós e que se derramou pelo mundo por outras pessoas.
(187) Um dia, desaparecemos e só existimos enquanto alguém souber que vivemos, alguém que corrobore a nossa presença no mundo (a)
(92) (...) Perder o que existe é diferente de perder o que não existe.
Sobre o Bem e o Mal
(447) O Homem porque depende cada vez menos daquilo que a Natureza dá espontaneamente, vai deixando de confiar nos ceús (nos deuses, no divino) para passar a ter uma crescente confiança no que produz, como recompensa justa do seu esforço.
(200) As pessoas privam-se do bem, como quem fecha os olhos e abdica da luz e isso explicaria o facto de Deus ser absolutamente bom. O mal não teria assim substância, seria apenas uma ignorância, uma ausência (...) O crente comum não quis saber disso, continuou a acreditar no Diabo, no Mal, no Inferno.
Sobre o Amor
(71) No amor há uma necessidade de transfiguração, de metamorfose. O amor será sempre uma renúncia ao ego, uma entrega a algo maior do que nós, uma metamorfose (...) Entregamo-nos para sermos maiores, numa tentativa de perfectibilidade (...) O amor não se resolve no círculo formado por duas pessoas mas na transcendência, na possibilidade, num futuro. "Amar não é olhar para o outro, é olhar na mesma direção".
Sobre ângulos e perspetivas
(63) Se tivermos imóveis, só conseguiremos ver um máximo de três lados de um cubo, mas um jogador, ao olhar para um lado, "vê" apenas a face que ficou virada para cima (...) ignorando as outras visíveis (mais 2 no máximo) e as invisíveis (pelo menos 3).
(131) É a diversidade de ângulos que nos faz mais sábios, mais compassivos e nos garante, ao mesmo tempo, a liberdade.
(fim da parte I)
Comentários