é preciso tomates! (visão de uma romântica ocidental monogâmica)


Hoje, uma conversa de duas horas com uma amiga fez-me refletir nos casais, nos relacionamentos, amorosos e duradouros (num contexto de estrutura monogâmica). O que dissertamos , de grosso modo, não eram conceitos ou convicções novos, inovadores, já me tinham atravessado várias vezes o pensamento, mas já não refletia sobre eles há algum tempo, alguns anos talvez.

Acredito ser importante (e procuro) ser maleável, não vincar as minhas opiniões em determinado momento, congelar crenças. Talvez por isso esta conversa, por ser um diálogo verdadeiro e não um monólogo dentro da minha cabeça, me tenha trazido uma vontade de maior reflexão, de mergulhar um pouco mais e "testar" de alguma forma a minhas concepções, crenças ou opiniões. Não propriamente durante a conversa, mas após a mesma, trouxe algum desejo de "profundidade" e de eventual renovação.

Falámos muito de quatro conceitos.
Falámos da coragem, e da ausência dela. Continuei a pensar na coragem, enquanto tomava banho e revivia experiências pessoais e as relacionava com o que a minha amiga me contara.
A força ou grandeza de um ato corajoso, na vida conjugal (e não só), depende muito do seu contexto e pode, por isso, assumir formas e relevâncias muito diferentes.
Outro conceito, foi a qualidade/felicidade dentro da relação de amor entre duas pessoas.


Falámos ainda do instinto e do tempo.


Será mais fácil relacionar estes conceitos com um exemplo, um caso de estudo.
Imaginamos um casal, que vive, aos olhos dos dois e dos demais, uma relação boa, saudável, com amor, respeito, comunicação, abertura. Um casal que atravessou a fase mais estonteante e avassaladora da paixão e vive agora um amor bonito há já dez anos. "Um casal feliz", resumindo a história.
Uma das pessoas do casal comete algo condenável, como por exemplo uma traição. Encontramos então as personagens (nada clichés): um traidor e um traído.

Vamos imaginar que o traído, antes de o ser, queria há já largos meses terminar a relação, apesar de ser boa, até se sentir feliz e de nada de errado e significativo existir (defeitos, erros, mentiras, remorsos...). Contudo, algo que ele desconhece, o instinto, lhe "diz" que aquela relação não está "bem", não é "certa", não tem futuro ou não vê o seu parceiro no seu futuro, por mais que não saiba explicar bem ( "é como seguir uma estrada com alguém, cuidada, limpa, sem obstáculos de maior, mas perceber, lá bem ao fundo, que não tem saída e, apesar de não ter placa a sinalizar, nada apontar para isso, consegue "percepcionar" um fim, um não-futuro").

Nesta história, o ainda-por-ser-traído protelou o fim da relação, pois não saberia justificar-se e não assumiria a responsabilidade pela dor do outro. Não havendo um motivo válido, palpável, para acusar o parceiro, inverter invisivelmente a situação, e assim fundamentar com maior força o final da relação, não teve a coragem de o fazer- "apenas" tinha o seu instinto e, com o tempo, um sentimento de desonestidade pelo perpetuar do relacionamento. Esta é uma forma de coragem, neste caso ausência dela. Claro que não falo em falta de coragem de forma leviana- afinal, estamos a falar de pessoas e de dor infligida no outro, que gostaríamos de evitar a todo o custo, pois aqui não existe ódio mas sim amor e um carinho especial pelo outro.


Quando o traído descobre que foi traído, confronta-se com uma ação que valida (aos olhos da sociedade e aos seus) o término da relação e então aí é acometido de uma outra coragem, consegue colocar uma pedra sobre o assunto, dizer algo como "nunca esperaria tal coisa, é imperdoável" e abandona. Com alguma possível desilusão, pela traição em si, mas principalmente com um grande, grande alívio.


Todo este exemplo para refletir o seguinte: é muito fácil ter "coragem" de tomar uma decisão dolorosa para outro quando a responsabilidade pode ser imputada ao outro, ou outros. Quando há uma brecha, uma ponta solta no outro, sacode-se as mãos e seguimos aliviados.
Quando a responsabilidade é inteiramente nossa e a culpa é nossa (mesmo não tendo feito nada errado), congelamos. A coragem necessária recrutar é de outra qualidade, é mais grandiosa e mais dolorosa. Não aparece por aí, caída. Porque no fundo, ninguém quer ser lembrado por algo que trouxe dor, não queremos assumir nem ter o peso da culpa e da responsabilidade do nosso lado. (E o que os outros vão dizer? Eles pareciam tão felizes, não era?)


Assumir a responsabilidade por inteiro pela dor do outro é duro. Mas não assumi-la, não tomar a decisão derradeira que consome todas as reservas incalculáveis de coragem, é desonesto.
E uma relação boa e feliz (com toda a subjetividade inerente) não deve ser desonesta - pelo menos no que toca ao mais importante, o amor (no sentido lato) e o instinto - ainda que o instinto possa falar mais alto do que o amor.
(O instinto é muito certeiro. E o amor não tem que desaparecer, o amor multiplica-se: uma parte dele fica guardada na memória da relação, e outras pedaços de amor vão nascer, naquilo que tocamos.)
Pelo menos, foi isso que me aconteceu.



Filme: Singles (1992)



nota - o tempo sara, cura e às vezes também nos engana. Depois de atos corajosos, o tempo, ainda no seu início de vida, pode fazer-nos pensar que o instinto venceu erradamente o amor, e queremos voltar atrás, regressar à relação. Porque o amor faz-nos falta, estamos ressacados. Contudo, se dermos mais um pouco de tempo ao tempo, podemos entender que o instinto estava certo. Normalmente isto acontece quando encontramos de novo o amor, por exemplo o amor próprio.


Como diz Afonso Cruz, um "final feliz depende sempre do momento em que decidimos terminar a história", depende do quanto prolongamos ou não o seu final.
E por isso é que o tempo é tão importante.
E por isso é que saber quando terminar o história é importante, para que essa seja recordada como feliz.

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